Montemor a meio-tom: clichés reticulados da Tipografia União

No seguimento de uma residência de investigação no Cineclube e Filmoteca de Montemor-o-Novo com o objetivo de recolher imagens vernaculares no concelho, e com o apoio do ICNOVA, continuamos a disponibilizar, para consulta e pesquisa, parte das imagens recolhidas nesta região do Alentejo Central. Prosseguimos esta colaboração com a apresentação de clichés reticulados datados da década de 1930 e provenientes da antiga Tipografia União de Montemor-o-Novo.

Esta coleção chegou ao nosso conhecimento em Outubro de 2022 quando, imediatamente após a publicação, neste site, do ensaio “Sensibilité Extrême”, fomos contactadas por membros do Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo que disponibilizaram, para digitalização e análise, um conjunto de matrizes para reprodução de fotografias em imprensa integrantes do espólio do Museu do Convento de São Domingos e sobre as quais desconheciam, então, a proveniência e conteúdo.

O Convento de São Domingos, erigido pela comunidade dominicana durante a segunda metade do século XVI, foi reabilitado e adaptado a biblioteca municipal e museu em 1972 pelo mesmo Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo ainda hoje responsável pela sua gestão e manutenção. O museu alberga espólios oriundos, sobretudo, de doações. Para além dos elementos incluídos nos seus cinco núcleos temáticos (arqueologia e etnologia, olaria, arte sacra, tauromaquia, traje e brinquedo), outros encontram-se dispersos pelos claustros, pela biblioteca e pelos espaços exteriores do convento. Peças líticas de origens múltiplas estão dispostas de forma aleatória pelos cómodos e, dentro de gavetas, ou sobre aparadores, repousam, em aparente desordem, uma série de objectos e imagens variadas. Incluindo aquelas sobre as quais nos vamos debruçar.

Foi com o intuito de estimular um aprofundamento sobre parte deste espólio diverso que nos foram abertos três gavetões, de onde retirámos mais de uma centena de matrizes envolvidas individualmente em papel manteiga, num visível estado de decomposição e desgaste. Ao desembrulhá-las, desvendámos, entre algumas xilogravuras e matrizes tipográficas, os 102 clichés em meio-tom para reprodução de fotogravuras que disponibilizamos integralmente nesta série.

Este conjunto de matrizes reticuladas para reprodução de imagens em imprensa, de dimensões diversas, foi doado ao Convento de São Domingos entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980 por Leopoldo Gomes, sócio do Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo. Leopoldo era também genro do fundador da Tipografia União, gráfica montemorense de onde acreditamos serem oriundas as matrizes apresentadas.

A Tipografia União foi fundada nas primeiras décadas do século XX, em Montemor-o-Novo, por Tomé Adelino Vidigal e o seu nome surge em homenagem ao Grupo União Sport (GUS), grupo desportivo da mesma cidade e do qual Tomé teria sido, também, fundador. Damos destaque a este detalhe dada a existência, nesta colecção, de diversas fotografias de membros do clube, reconhecidos pelo seu equipamento listrado, tal como nos foi indicado pelo fotógrafo Joaquim Chapa, quem gentilmente nos auxiliou a identificar os conteúdos destas imagens produzidas em Montemor-o-Novo, após digitalmente positivadas por nós (publicamos, a título de exemplo, algumas destas positivações). Durante alguns anos, a tipografia e a sede do GUS partilharam moradia, tendo estado ambas instaladas na actual Rua Capitão Pires da Cruz. Anos mais tarde, a Tipografia foi transferida para a Rua do Pedrão, número 21, onde permaneceu até ao seu recente e definitivo encerramento. Foi na sua primeira morada que, em 1916, foi composto e impresso o primeiro número do jornal quinzenal local “O Almansor” e foi também daí que, a 14 de Janeiro de 1932, saiu a primeira tiragem do semanário “O Montemorense”. Acreditamos que as matrizes doadas por Leopoldo Gomes ao Museu do Convento de São Domingos pertenceram às primeiras edições deste Jornal, em particular àquelas compostas durante a década de 1930, como pudemos aferir através da datação das fotografias, realizada também com o auxílio de J. Chapa. A gestão da tipografia esteve a cargo de Leopoldo a partir de 1978, após o falecimento de Tomé Vidigal, e foi sensivelmente na mesma época que os clichés disponibilizados nesta série foram entregues por si ao museu e depositados, pela sócia e funcionária Julieta Marques, nas gavetas que agora voltamos a abrir.

Desembrulhámos cuidadosamente mais de uma centena de matrizes para impressão, dentro das quais as 102 fotogravuras a meio-tom aqui reproduzidas. Nestas, encontrámos 52 retratos individuais, na sua grande maioria masculinos, retratos de grupo, vistas de Montemor-o-Novo, cenas de touradas, elementos religiosos e automóveis. A coleção é composta ainda por uma série de matrizes gravadas a traço, tecnologia anterior à autotipia, incluindo xilogravuras — das quais reproduzimos, no final da série e a título de exemplo, 2 retratos — e outros elementos gráficos — dos quais digitalizámos o antigo brasão de Montemor-o-Novo, o logotipo do clube desportivo Sport Lisboa e Montemor e um anúncio tipográfico da Sociedade Industrial Ceres que remetia às suas instalações na cidade. Estes objectos, e em particular aqueles cuja matriz é de metal, tendencialmente oxidável, encontram-se em más condições de preservação e merecem um trabalho de conservação e restauro. Todas as matrizes, incluindo as 102 em chapa metálica aqui publicadas, tendo altura e largura variadas, encontram-se aplicadas em blocos de madeira com profundidade idêntica, de cerca de 5 centímetros. Estes blocos móveis permitiram a formação de composições de imagem e texto que combinavam estas retículas com os tipos que compunham a mancha escrita das páginas de jornal, técnica cara à imprensa ilustrada e que, décadas antes da produção destes clichés reticulados, revolucionou a disseminação de imagens fotográficas em massa neste meio de comunicação.


Antes ainda do aparecimento da fotogravura a meio-tom e dada a progressiva industrialização da imprensa ao longo do século XIX, a presença de imagens em jornais já se tinha popularizado. Se a primeira tecnologia usada na imprensa ilustrada foi a litografia, a massificação do uso de imagens neste meio proporcionou-se com a adopção da xilogravura. Nesta técnica, a imagem a ser reproduzida começa por ser gravada em madeira para ser depois transferida, através de um molde, para uma placa de metal. Estas placas, ao poderem ser fixadas na mesma matriz usada pela tipografia, permitiram que texto e imagens fossem impressos lado a lado pela primeira vez, simplificando e embaratecendo o uso de ilustrações nas publicações jornalísticas. O primeiro jornal a utilizar amplamente a xilografia para ilustrar os seus conteúdos foi o Illustrated London News (1842–2003) que, tal como outros jornais que o seguiram (como o francês l’Illustration, ou o alemão Illustrirte Zeitung) atingiu novos públicos de classes média e baixa e subscritores muito para lá das suas fronteiras nacionais. Estes jornais, que transaccionavam, também, ilustrações entre si, estimularam uma circulação de imagens à escala planetária. Esta troca transnacional, onde ilustrações foram vendidas, copiadas, redesenhadas e massivamente disseminadas, estruturou a representação visual de uma era, impactou profundamente a história da fotografia e transformou para sempre os regimes de visualidade (Smits 2020).

“The modern newspaper is yearly becoming more wonderful, more interesting, and more powerful. Not content with giving its readers a daily record of events (…) it now amplifies and beautifies this colossal task by illustrating its descriptions with actual pictures, marvelous alike in their accuracy and in the speed of their production” (Benjamin J. Falk, “Photography VS the Press” in Wilson’s Photographic Magazine, Setembro de 1985, citado em Mintie 2021)

Como já foi adiantado, as fotogravuras que expomos, em particular os clichés reticulados, foram produzidas nas décadas de 1930 e 1940 em Montemor-o-Novo e replicadas, seguindo as técnicas da época, na imprensa local. A técnica de reprodução fotomecânica que estes artefactos serviam denomina-se de autotipia, foi patenteada por Georg Meisenbach em 1882 na Alemanha e mais tarde aprimorada por Frederic Ives e pelos irmãos Max e Louis Levy em 1885 e 1887 (Stulik e Kaplan 2013). O seu procedimento consiste na conversão de uma fotografia numa imagem em trama, partindo da sua decomposição em pequenas manchas regulares, de forma a permitir a reprodução de imagens a meio-tom. Para tal, o negativo de uma imagem é subsequentemente exposto com tramas de padrões de linhas pretas, em ângulos específicos, e depois transferido para placas de cianotipia, para a obtenção de um clichê fotográfico através da ação de ácidos (idem). Este processo resulta numa imagem composta por uma malha de pequenos pontos de dimensões variáveis (que estão, aliás, bastante evidentes nestas digitalizações), permitindo a impressão de tonalidades intermediárias entre o preto e o branco, reproduzindo assim as sombras e meios-tons da imagem original. A quantidade e espessura de pontos influencia a nitidez da imagem reproduzida: mais e menores pontos resultam numa imagem com maior definição.

Foi esta técnica que permitiu que jornais de grandes tiragens pudessem passar a ilustrar os seus artigos com “as próprias fotografias”, como refere Benjamin J. Falk na citação acima, e não com as então vigentes ilustrações xilográficas. Este processo de reprodução de imagens foi gradualmente introduzido na imprensa, tendo o seu uso começado a ser popularizado a partir da década de 1890. A autotipia é também commumente conhecida como “fotogravura a meio-tom” pela capacidade, à época inovadora, que o método tem de reproduzir com fidelidade as tais subtilezas tonais de claro/escuro, com toda uma gama de cinzentos, caras à fotografia. Neil Harris classificou a introdução desta tecnologia na imprensa como a “revolução do meio-tom” (1990), dadas as transformações profundas que produziu no carácter das ilustrações jornalísticas. Foi desde a sua disseminação que características como o “rigor” e a “rapidez”, realçadas acima por Falk e associadas às qualidades de “objectividade” e “imediatismo”, se tornaram atributos indissociáveis das concepções actuais sobre a fotografia de imprensa (Mintie 2021). No entanto, gostaríamos de realçar que o processo da xilogravura, cuja gravação de imagens em madeira partia muitas vezes de fotografias originais, reproduzia ilustrações com uma fidelidade reprográfica que chegou a ser recebida pelos vitorianos de forma análoga à recepção da imagem fotográfica. Como nos levanta Thierry Gervais (2010), reportagens ilustradas com recurso à xilogravura continuaram a ser publicadas ao longo dos anos de 1920, mesmo depois do surgimento da fotogravura a meio-tom. No limite, o surgimento desta tecnologia, e em particular se nos debruçarmos sobre os anos em que, na imprensa ilustrada, a sua recepção era análoga à da xilogravura, pode sugerir-nos uma porosidade das (ou apontar múltiplas zonas cinzentas nas) fronteiras entre o que distingue, ou não, uma ilustração da reprodução de uma imagem fotográfica.


Quando a gestão da Tipografia União foi abandonada por Leopoldo, a gráfica foi trespassada para Mário Ramalho, quem tinha trabalhado na empresa durante toda a sua vida. Mário terá acompanhado as inovações reprográficas que atravessaram a segunda metade do século XX e as primeiras décadas do século XXI, enquanto continuava a imprimir jornais, livros, convites de casamento, cartões de visita ou cartazes publicitários, registos gráficos que hoje em dia ajudam a ilustrar parte da história de Montemor-o-Novo. A empresa encerrou em 2020, durante a pandemia Covid-19. Com o fecho, impressoras manuais e offset foram abandonadas, tal como inúmeros caracteres de chumbo e, eventualmente, outros clichés fotogravados semelhantes aos que aqui reproduzimos.


Certamente sintoma da nostalgia que métodos analógicos de reprodução gráfica nos convocam, nos últimos anos têm sido inúmeras as experiências de apropriação de elementos provenientes de antigas gráficas e tipografias para a criação de objectos artísticos de carácter artesanal. A título de exemplo, nomeamos uma colaboração de 2015 entre a associação cultural montemorense Oficinas do Convento e a associação de artes gráficas Oficina do Cego que produziram, com recurso a caracteres tipográficos, provavelmente provenientes de uma das gráficas da cidade, uma publicação onde estes objetos foram reapropriados. Tal como estes tipos, as autotipias aqui apresentadas também podem servir para esse fim. Os rostos, objetos e panoramas aqui retratados poderiam ser alvo de reimpressões, reproduzindo, de novo, estes múltiplos de Montemor-o-Novo a meio-tom.

Daniela Rodrigues

Bibliografia

Gervais, Thierry 2010, "Witness to War: The Uses of Photography in the Illustrated Press, 1855-1904" in Journal of Visual Culture, 9(3), pp. 370–384

Harris, Neil 1990, “Iconography and Intellectual History: The Halftone Effect” in Cultural Excursions: Marketing Appetites and Cultural Tastes in Modern America, Chicago: University Press 1990, pp. 307-315

Mintie, Katherine 2021, “‘Photography VS the Press’: Copyright Law and the Rise of the Photographically Illustrated Press” in Circulation and Control: Artistic Culture and Intellectual Property in the Nineteenth Century, Marie-Stéphanie Delamaire e Will Slauter (eds), pp. 471–496

Smits, Thomas 2021, The European Illustrated Press and the Emergence of a Transnational Visual Culture of the News, 1842–1870, Routledge

Stulik, Dusan e Art Kaplan 2013, The Atlas of Analytical Signatures of Photographic Processes, Los Angeles, CA: Getty Conservation Institute

Outras fontes

"Picturing the News: The Birth of the Illustrated Press", em www.daheshmuseum.org
"A Tipografia União fechou", em http://alandroal.blogspot.com/

Esta série é uma extensão de uma pesquisa realizada em residência de investigação no Cineclube e Filmoteca do Município de Montemor-o-Novo e tem o apoio do ICNOVA.

Agradecimentos
Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo, Carlos Carpetudo, Gonçalo Lopes, Helena Marques, Mariana Castro, Joaquim Chapa, Tiago Fróis e Zé Leitão.