“Sensibilité Extrême”: imagens estereoscópicas recolhidas em Montemor-o-Novo
No âmbito de uma residência de investigação no Cineclube e Filmoteca de Montemor-o-Novo com o objetivo de recolher imagens vernaculares no concelho, foram digitalizados, para preservação, uma série de fundos fotográficos oriundos desta região do Alentejo Central. Com o apoio do ICNOVA, ao longo dos próximos meses serão disponibilizadas, para consulta e pesquisa, parte destas imagens.
Inauguramos esta colaboração com um conjunto de 68 placas de vidro com fotografias estereoscópicas nos formatos 6x13 e 8.5x17.5 cm, em positivo e negativo. Embora o visionamento num ecrã de computador impossibilite a experiência de tridimensionalidade cara ao dispositivo, acreditamos que a digitalização e divulgação destas placas promovem a análise das imagens que suportam, tal como permitem a sua salvaguarda.
Pouco sabemos sobre a história das pessoas, objetos, plantas, animais e lugares retratados nestas fotografias, tal como não temos informações sobre quem as produziu. Nesse sentido, de forma lacunar e (seguramente) indisciplinada, propomos uma deriva em torno da história destas imagens, dos seus usos e dos seus suportes materiais.
“Imaginado pelo Sr. Wheatstone, e aperfeiçoado pelo Sr. Brewster, o estereoscópio é certamente um dos mais curiosos instrumentos da óptica moderna. Duas provas fotográficas, examinadas neste aparelho, deixam de ser simples desenhos para serem os próprios objectos, vistos com os seus relevos, as suas concavidades, tal como existem na natureza. Os retratos, as estátuas, os monumentos, as paisagens, os objectos da história natural, podem ser reproduzidos pelo estereoscópio. As pessoas que desejem possuir os retratos de todos os membros da família reunidos, encontrarão no estereoscópio uma forma segura de os ter, a preços módicos” Anúncio publicado pelo fotógrafo Louis Nasi no Semanário Asmodeu, em 1857 (Reproduzido em Flores 2019)
A tecnologia estereoscópica, génese de tecnologias usadas hoje em dia no cinema 3D, na indústria dos jogos de vídeo, em dispositivos de realidade virtual e noutras experiências imersivas, nasceu a partir de pesquisas sobre os princípios de visão binocular: consiste na conjugação de duas imagens semelhantes que, quando observadas através de um visor próprio — o estereoscópio —, produzem no nosso cérebro uma terceira imagem que ilude a tridimensionalidade.
A fotografia estereoscópica, “fotografia tridimensional”, ou “fotografia com relevo” surgiu na segunda metade do século XIX, quando foi também amplamente difundida e popularizada. Em Portugal, segundo os trabalhos de Victor Flores, a estereoscopia foi introduzida em meados da década de 1850, em sincronia com outros contextos ocidentais. Imagens estereoscópicas estão entre as fotografias mais antigas conhecidas no país e um levantamento extensivo realizado por José Martins Ferreira demonstra como nessa época existiram fotógrafos editores de estereoscopias por todo o território nacional, incluindo nas ilhas. Flores adianta-nos também que a difusão da estereoscopia em Portugal foi impulsionada por amadores abastados que detinham câmaras binoculares, com as quais documentaram “a vida no campo ou nos portos de pesca”, retratos, cenas familiares e paisagens de países visitados, conteúdos que podemos ver reproduzidos no fundo aqui digitalizado, empiricamente organizado segundo algumas destas áreas temáticas.
Perante o desconhecimento da proveniência das imagens que disponibilizamos, esta organização, que primeiramente separou as imagens positivas (as primeiras 48), das negativas (as últimas 20), obedeceu a um critério, ainda que por vezes difuso, de semelhança. Procurámos agrupar imagens com pistas similares de forma a auxiliar uma eventual pesquisa futura quanto aos locais, indivíduos e temas que foram nelas retratados. Inferimos assim, por exemplo, que uma série considerável de imagens (11 positivas e 18 negativas) retratam paisagens alpinas. Na estereoscopia 56, negativo de uma imagem de um povoado no sopé de uma montanha com neve, podemos ler, no canto inferior esquerdo da imagem à direita "CONFISERIE / PATISERIE", inscrição que nos indicia uma localidade francófona. No início do século XX os Alpes foram, efectivamente, um destino de viagem popular entre famílias portuguesas abastadas.
Pelo facto de nesta colecção de estereoscopias em vidro constarem imagens em negativo (20, no total), é provável que o seu proprietário original tenha sido o autor de parte das fotografias compiladas (e que, para tal, tenha detido uma câmara binocular). Por seu turno, a presença na coleção de 48 imagens em positivo revela-nos ainda que estas placas estereoscópicas eram mantidas para serem vistas e imaginamos, assim, que este eventual fotógrafo amador tenha detido, também, um estereoscópio para o seu visionamento. É de referir, no entanto, que nenhuma das imagens em positivo corresponde aos negativos que as acompanham.
O visionamento deste tipo de imagens, então amplamente difundidas, preencheu o lazer quotidiano da burguesia oitocentista, instigou os seus impulsos colecionistas e constituiu a sua cultura visual. Ao analisar a construção histórica do observador, Jonathan Crary descreve-nos o surgimento de um novo tipo de indivíduo, fruto dos modos de circulação, consumo, produção e racionalização que emergiram no século XIX. Em Techniques of the Observer, Crary descreve como, desde 1840, e em particular desde o surgimento de uma série de dispositivos, entre os quais o estereoscópio, a experiência visual se passa a autonomizar do seu referente, podendo assim circular no fluxo dos meios de mobilidade e consumo do mundo capitalista e industrial que as imagens começam a integrar. Como vimos, na fotografia estereoscópica, a imagem tridimensional produzida pelo cérebro nesta experiência imersiva pretende evocar os “próprios objectos, vistos com os seus relevos, as suas concavidades, tal como existem na natureza”, convocando, à distância, os elementos retratados. No entanto, é de realçar que parte central da contribuiçao deste autor para o estudo deste medium é o apontar para o caráter de "falso realismo" destas imagens. Crary reforça que ao percorrermos uma imagem estereoscópica nunca a apreendemos de forma geral; que a sua experiência para o observador é a de um “efeito perceptual de patchwork de intensidades diferentes do relevo numa única imagem”, imagem que embora possua uma “clareza alucinatória”, não forma um plano uniforme, coerente ou homogéneo, do ponto de vista da convergência do olhar (Crary 1992: 126).
Estas imagens tridimensionais, ilusoriamente realistas, circularam “entre cidades e países, cafés e salas de estar, entre mãos e visores, para se juntar[em] de forma mais ou menos aleatória, ou mais ou menos calculada, a outras tantas vistas, de proveniências diversas” (Flores 2019: 28).
Ao ampliar a imagem que serve de capa a esta série — a digitalização de uma placa de vidro que representa duplamente um positivo de uma paisagem com um lago e uma flora da qual penso distinguir alguns juncos —, deparei-me com vestígios de múltiplas impressões digitais que remetem a um incessante manuseio. Estes vestígios exaltam a dimensão física, táctil, destes dispositivos. Se as imagens tridimensionais produzidas através do visionamento estereoscópico são espectrais (you can look, but you can not touch), autónomas dos elementos que referenciam, não o são estas placas de vidro, quando analisadas enquanto objetos. Os lastros de dedadas ampliadas nestas superfícies de vidro, bem como a qualidade das imagens cujo desgaste testemunha o passar do tempo, relembram-nos da materialidade do seu suporte e convocam-nos a imaginar os seus usos e circulações ao longo da sua vida social.
Em Photographs, Objects, Histories. On the Materiality of Images, Elizabeth Edwards e Janice Hart, encararam as “fotografias” como “objectos no tempo e no espaço” e sublinharam, a par com as suas qualidades abstractas e representacionais, os seus aspectos materiais e, justamente, a sua circulação. Além da imagem que estes contêm, passa a interessar aos estudos dos objectos fotográficos o seu volume, a sua textura e a sua materialidade, sendo auscultados, também, os seus suportes, disposições, marcas de envelhecimento e desgaste.
A observação do invólucro das 68 imagens estereoscópicas aqui reproduzidas dá-nos efectivamente algumas pistas sobre a sua deslocação espácio-temporal. Estas placas de vidro chegam hoje às nossas mãos acondicionadas numa caixa de cartão com a inscrição:
A Préserver de la Lumière et de l’Humidité
SOCIÉTÉ ANONYME
Des Plaques et Papiers Photographiques
A. LUMIÈRE & SES FILS
LYON-MONPLAISIR
Plaques au Gélatino-Bromure d’Argent
SENSIBILITÉ EXTRÊME
Esta inscrição indica-nos que a história destas imagens começa, tal como a dos instantâneos e a do cinema, no bairro de Monplaisir da Cidade de Lyon. Aqui, Antoine Lumière fundou, em 1882, uma pequena fábrica artesanal onde criou técnicas de revelação que revolucionaram a produção, circulação, uso e apropriação de imagens, reconfigurando os modos da sua fruição à escala planetária. A Société Anonyme Des Plaques et Papiers Photographiques A. Lumière & Ses Fils foi criada após o sucesso comercial de placas fotográficas instantâneas, múltiplas vezes reproduzidas, reveladas com gelatina de prata. Este processo, génese da fotografia em filme, substituiu a revelação húmida com colódio, permitindo que os materiais fotossensíveis fossem expostos e processados muitas vezes após a sua fabricação. O vidro foi o suporte mais utilizado para as emulsões dos negativos até meados de 1920 e a Société Anonyme Des Plaques et Papiers Photographiques A. Lumière & Ses Fils esteve activa com este nome entre 1892 e 1911. É portanto dentro desta janela temporal que podemos incluir o período de revelação, produção e eventualmente de captura das imagens aqui reproduzidas.
O resto da biografia social desta caixa e do seu conteúdo foi brevemente aferido por entrevistas esparsas e contamos em fast backward: a sua actual proprietária, outrora estudante de fotografia e hoje farmacêutica e residente em Vendas Novas, adquiriu-a à Junta de Freguesia de Lavre, Montemor-o-Novo, de onde é natural, por ser apaixonada por estudos em torno do medium estereoscópico; a Junta de Freguesia de Lavre tinha-se tornado proprietária destas imagens após a dissolução e extinção de uma cooperativa antes sita numa moradia pertencente a uma família antiga e abastada da região; as placas de vidro integravam (imagina-se que por acidente ou acaso) o arquivo da cooperativa, tendo sido encontradas numa cave, junto a outros objectos abandonados. Pensa-se que antes tenham pertencido à família proprietária do edifício da sua sede, tendo sido eventualmente esquecidas no seu interior. O facto de uma parte significativa das imagens retratar cenas de touradas parece confirmar esta hipótese, já que esta família é, há muitas décadas, proprietária de ganadarias e está historicamente relacionada a actividades tauromáquicas.
Embora, nesta deriva, nos interesse realçar a potência da análise destes objectos enquanto “coisas”, esta pista instiga-nos a não deixar de lado o que vemos em cada imagem fotográfica. Detemo-nos por isso, brevemente, sobre os conteúdos retratados nestas placas de vidro.
Na cultura visual constituída pela estereoscopia durante a segunda metade do século XIX e início do século XX, foram retratados, de forma sobretudo serena e pitoresca, ambientes urbanos, cenas quotidianas, paisagens e monumentos, essencialmente ao ar-livre. Nesta série de fotografias não aparece, de facto, qualquer imagem produzida dentro de um estúdio. Encontramos paisagens de natureza exuberante — floresta, lagos, montanha, rio, praia —, retratos enquadrados nessas paisagens — que podem remeter a uma génese da fotografia de viagens ou de turismo — e retratos de grupo em momentos de ócio e lazer, como a prática de montanhismo ou um piquenique à beira-rio. Por fim, é significativo ainda o conjunto de estereoscopias dedicadas à prática tauromáquica, que é aqui retratada em diversos recintos e ao longo de várias etapas, num formato que ecoa o da reportagem visual, com uma descrição quase minuciosa dos participantes, espaços, performances e cultura material destes eventos.
Ao observar estas imagens, podemos reiterar o já referido regime de visualidade da burguesia oitocentista caracterizado por uma captura (extrativista) de uma natureza exuberante a ser transportada para fruição visual e estética nos salões e espaços privados dos seus quotidianos. E ainda considerar o valor histórico e etnográfico destes registos. Uma observação atenta de cada imagem pode alcançar mais informações sobre o lugar e momento da sua captura através da auscultação de elementos da flora, geologia, arquitectura, indumentária, performance ou cultura material retratados nestas imagens. Biólogos, geólogos, arquitectos, etnógrafos, arqueólogos ou historiadores podem deter-se sobre detalhes inscritos nestas placas de vidro e continuar a eterna escavação de sentidos que um trabalho arquival e fragmentário sobre fotografia vernacular parece incessantemente instigar.
Voltando à caixinha de cartão onde estas imagens viajaram: na sua inscrição é ainda exaltada a “SENSIBILIDADE EXTREMA” destes suportes que devem ser “preservados da luz e da humidade”, por deterem em si, através de um processo físico-químico luminoso, traços de luz numa emulsão de prata. Estes avisos remetem-nos, de novo, para as características mais físicas dos objectos frágeis que estamos a observar. Ao exaltar a capacidade de testemunho das imagens fotográficas, Didi-Huberman referiu que é inerente à fotografia a sua habilidade de estabelecer um ponto de contacto com o que retrata: “a imagem toca no real”. Aqui, tentamos apontar que as impressões digitais ou o desgaste da matéria que observámos são rastos do passar do tempo, das deslocações no espaço e índices dos usos materiais a que estas fotografias, enquanto objetos, foram submetidas: testemunham momentos em que o real tocou na imagem.
Daniela Rodrigues
Bibliografia
Crary, Jonathan 1992, Techniques of the Observer, London: MIT Press
Didi-Huberman, Georges 2012, Imagens apesar de tudo, Lisboa: KKYM, 2012
Edwards, Elizabeth e Janice Hart 2002, Photographs, Objects, Histories. On the Materiality of Images, Nova Iorque: Routledge
Flores, Victor (org.) 2019, A Terceira Imagem. A fotografia estereoscópica em Portugal, Lisboa: Documenta
Esta série é uma extensão de uma pesquisa realizada em residência de investigação no Cineclube e Filmoteca do Município de Montemor-o-Novo e tem o apoio do ICNOVA.
Agradecemos a Mariana Mayer Raposo a sua colaboração nesta pesquisa e a disponibilização destas imagens.