Sobre José Fernandes (n. 1933), eis o testemunho de sua sobrinha Márcia Fernandes, filha de Eugénia e Marcelo Fernandes, nascida em Niterói em 1961. “O que sei sobre sua infância me foi contado por minha mãe. José se destacava por sua teimosia, pela dificuldade de se adequar às normas da escola, pelo seu amor ao mar, e por passar horas pescando sozinho. Isso lhe rendeu o apelido de Badejo, o apelido acompanhou-o pela vida, minha mãe não aprovava que o chamássemos de tio Badejo mas todos nós, os sobrinhos, dizíamos pelos cantos que era engraçado, achávamos inofensivo e ele parecia não se importar. José, ao contrário dos irmãos e primos que deixaram Portugal antes dos dezoito anos, ficou e foi chamado a servir o exército. Salazar ambicionava manter as colónias e José partiu para Goa [1953 - 1957], onde esteve por quatro anos. Minha mãe conta que por muitas vezes acordou na pequena casa da Fajã dos Padres ao ouvir o choro de Augusta que olhava a janela e conversava com o mar, cobrava o fato de lhe ter levado o filho para uma terra que Augusta sequer sabia imaginar. José mandava algumas cartas e conseguiu até mesmo duas fotografias deste período.
Quando souberam do dia do regresso de José à Madeira, minha mãe, a irmã e minha avó Augusta foram ver o desembarque da tropa. Eles vinham enfileirados e em um dado momento José vislumbrou a mãe na calçada, num impulso correu ao seu encontro e a beijou saudoso. Não tardou para que um oficial se aproximasse e lhe desse uma bofetada na cara, aos olhos de todos que lá estavam, à vista de minha avó que teria ficado perplexa e aturdida. Em 1960, José Marinheiro morreu, o coração cansado parou de bater. Uma tristeza imensa se abateu sobre a família já dividida, alguns na terra de origem, outros em Venezuela, outros no Brasil. A Madeira não se mostrava, naquela altura, um lugar promissor, faltava trabalho, faltava inovação. Augusta decide vender o que possuíam e partem para o Brasil com os quatro filhos que ainda viviam com ela em Portugal. Todos os outros já haviam partido e o plano é reunir todos no Brasil.
Já casado, José embarca com a mulher Conceição no navio Vera Cruz. Foram onze dias de viagem em companhia da mãe viúva, das irmãs Maria, Eugenia e do caçula Manoel, também chamado de «nosso menino». Aportaram no Rio de Janeiro em setembro de 1960, em seguida partem para Niterói, cidade vizinha onde a colónia lusitana é grande. José, ao contrário dos irmãos e cunhados, não tinha um comércio, e conseguiu um emprego numa fábrica de chaleiras. Minha mãe conta que José e Conceição moravam num morro de Niterói numa casa alugada. Conceição fica então grávida. Há no entanto preocupações com o comportamento de José que tem dificuldades de adaptação. Um acidente de trabalho na fábrica o fere na cabeça e o afasta das atividades, e esse evento foi por muitos anos contado por minha mãe como a possível explicação para o que se seguiria tempos depois. Tânia, minha prima, nasce em março de 1961 e eu nasci em julho do mesmo ano. Logo em seguida nasce o menino que recebe o nome do pai, sendo assim chamado de Zézinho. O comportamento de José piora, há relatos de agressividade e tendências persecutórias em relação a mulher. José piorava. Não havia, segundo minha mãe, um diagnóstico preciso, nem tão pouco medicações eficazes, e num dia em que tudo pareceu insuportável, meu pai usou o telefone do seu bar e chamou uma ambulância que levou José. Meu tio José inaugurou naquele dia uma longa trajetória manicomial, foram diferentes hospitais. Para mim, com o passar dos anos, veio a percepção de que aquele assunto era doloroso, nós sempre o visitávamos mas o tema era pouco falado. Conceição, mulher de meu tio arquitetou o que veio a ser o mais duro golpe da vida de José. Orientada por advogados, preparou toda a documentação necessária para deixar o Brasil. Não obstante, para levar as crianças teria que ter a autorização paterna, e nunca a família teve detalhes sobre como se deu exatamente o fato, mas um funcionário do hospital psiquiátrico teria se prontificado a ajudá-la. Munido de caneta, esteve na enfermaria de José e valendo-se de subterfúgios teria colhido a assinatura nas páginas da autorização. Sem saber, José assinou a saída dos filhos. Eles deixaram o Brasil em companhia da mãe.
Na década de 1970, meu tio teve alta hospitalar e seu caso foi considerado passível de ser tratado em casa. Voltou ao nosso convívio, foi morar com minha tia Agostinha. Manteve seu temperamento ensimesmado, falava pouco e, ao entardecer, parecia ser acometido por inquietações que o faziam proferir frases sem nexo mas visivelmente carregadas de emoções, ira e xingamentos. Era um doce com os sobrinhos. Nós aos pouco fomos nos acostumando com as vozes que o habitavam, sabíamos de seus tormentos mas eles não nos incluíam, ele jamais foi agressivo com nenhum de nós. Sempre, sempre que me via dizia que Tânia, minha prima e sua filha, deveria estar como eu. Acho que meu tio via a filha e seu desenvolvimento através da minha figura, eu ficava feliz por lhe oferecer esse alento numa saudade tão solidificada.
Sempre me perguntei se meu tio teria nascido com seu diagnóstico, se adoeceu na guerra ou mesmo se o fatídico acidente de trabalho teria sido a causa. Nunca saberemos. Um dia o levei ao consultório médico no hospital onde eu trabalhava, um médico amigo ficara de avaliar meu tio, que naquela altura, apresentava um quadro de gastrite. Durante a anamnese médica, meu amigo perguntou a meu tio: Tem mais alguém na sua família com problema psiquiátrico? Meu tio respondeu:
-Todos, mas só eu me trato.”