O FOGO E AS CINZAS: Em memória de Ulf Ding
Com o apoio do ICNOVA e no seguimento de uma residência de investigação no Cineclube e Filmoteca de Montemor-o-Novo, temos vindo a disponibilizar imagens vernaculares recolhidas nesta região do Alentejo Central. Esta última série é composta por um conjunto de 52 fotografias 10 x 15, a cores, que retratam a devastação causada por um incêndio que deflagrou na Quinta das Artosas a 4 de Agosto de 2003, verão em que Portugal foi afectado por uma onda de calor particularmente severa.
No dia 4 de Agosto de 2003, Ulf Ding, pianista, musicoterapeuta, afinador, restaurador e construtor de pianos, residia nesta herdade há mais de uma década, onde se dedicava a algum trabalho agrícola e aos seus ofícios. Este conjunto de imagens foi capturado por si no dia seguinte à passagem do fogo pela quinta e testemunha a gravidade da sua destruição. Nelas vemos uma caravana, alfaias agrícolas e veículos motorizados queimados. Vemos ainda pianos consumidos pelas chamas e parte de meio milhar de oliveiras, algumas delas milenares, totalmente carbonizada. Séculos antes de ter sido fustigada pelo fogo, a Quinta das Artosas foi habitada por frades dominicanos que aqui produziram azeite e demais produtos para suprir necessidades alimentares de residentes de Montemor-o-Novo. Esta herdade, de cerca de 10 hectares era, pelo menos desde então, pontuada por centenas de oliveiras e outros pomares.
HOME IS WHERE THE FIRE IS
No dia 4 de Agosto de 2023 eu vivia na Quinta das Artosas há cerca de dois anos e a meio da tarde, como habitualmente, cruzei-me com o meu vizinho e querido amigo Ulf. Os termómetros marcavam mais de 40ºC, sentíamos uma lentidão pesada, estava um silêncio quente e respirávamos fumo de algum incêndio distante. Ele disse-me: Hoje faz 20 anos que ardeu tudo. Para nos protegermos do sol, entrámos na sua casa sombreada e fresca e é provável que tenhamos bebido uma cerveja gelada. Sobre a grande mesa de madeira, que tantas noites esteve rodeada de amigos em encontros de cante alentejano, Ulf dispôs as fotografias que hoje são aqui reproduzidas. Diante das cinzas representadas nas imagens, foi sobre o fogo que falámos (como se estas, ainda em brasa, pudessem atear as chamas a qualquer instante).
ALEGRIA FOGO cria PENSAMENTO TERRA
Talvez seja demasiado literal convocar a ideia de Didi-Huberman sobre o “carácter ardente” das imagens (e dos arquivos) que, enquanto sobreviventes de uma destruição (de um incêndio), inevitavelmente evocam “as cinzas de tudo aquilo que as rodeava e que ardeu”. Mas vou fazê-lo porque para falar do fogo permito-me, como Gaston Bachelard, a uma “física ou química do devaneio”. É que foi também demasiado literal a forma como Ulf cumpriu o pacto que fez com o Alentejo, proferido a cada noite de cante alentejano realizada na Quinta das Artosas:
Eu sou devedor à terra
A terra me está devendo
A terra paga-me em vida
Eu pago à terra em morrendo
Uma semana depois da tarde em que nos aproximámos destas imagens Ulf morreu com um ataque cardíaco inesperado e fulminante. Tal como tinha desejado, foi celebrado com a sua família e amigos um evento fúnebre em que se depositaram as suas cinzas na mesma terra que tinha ardido 20 anos antes e onde habitou mais de metade da sua vida.
VIDA CRIA VIDA
Na Quinta das Artosas ainda existem alguns indícios do incêndio. Os quadros de ferro fundido dos 12 pianos que arderam estão dispostos contra uma grande pedra de granito, como uma lápide. Alguns troncos de oliveiras, embora negros e ocos, permanecem hirtos como monumentos majestosos, enquanto de outros brotaram, como fénixes, rebentos que cresceram depressa com a força das suas raízes centenárias. E em tardes de verão o ar fica impregnado de um aroma doce a Foeniculum vulgare, das poucas plantas silvestres que, ao calor, permanecem verdes entre tanta erva seca, dourada, inflamável (Prometeu roubou o fogo a Zeus dentro de um grande caule de funcho).
Junto das cinzas de Ulf, as suas filhas plantaram um sobreiro com a ajuda de Peter Zin, músico, poeta e “pastor de árvores” que tem dedicado parte da sua energia à regeneração dos frágeis solos do Alentejo. Ele disse-nos: se não se tirar a cortiça, um sobreiro dura mil anos. Quando coberto pelas suas folhas, o solo não arde. Mas estas imagens (e os pianos e as oliveiras) queimam. Não quero que parem de arder. Para tal, aproximo-me e sopro “suavemente para que a brasa, sob as cinzas, continue a emitir o seu calor, o seu resplendor, o seu perigo”.
Daniela Rodrigues
IDEAS - Aix-Marseille Université / A*Midex
Bibliografia:
Bachelard, Gaston 1938, La Psychanalyse du feu, Paris: Gallimard
Didi-Huberman, George 2012, “Quando as imagens tocam o real” in Pós: Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204 - 219
Zin, Peter 2023 [2007], VISIBLE HAND, Montemor-o-Novo: Edição de autor. Alguns excertos disponíveis em: https://terrabatida.org/derivas_one.php?id=5
Nota: As frases a negrito que pontuam o texto são excertos do livro VISIBLE HAND, de Peter Zin.
Esta série é uma extensão de uma pesquisa realizada em residência de investigação no Cineclube e Filmoteca do Município de Montemor-o-Novo e teve o apoio do ICNOVA.