Fernando Moital (in memoriam) em Santiago do Escoural: o ciclo da água e outros caudais
Com o apoio do ICNOVA e no seguimento de uma residência de investigação no Cineclube e Filmoteca de Montemor-o-Novo, disponibilizamos imagens vernaculares recolhidas nesta região do Alentejo Central. Prestando homenagem a Fernando Alfaiate Moital, falecido em Setembro de 2022, esta série debruça-se sobre o seu precioso legado fotográfico, ao apresentar um leque de fotografias capturadas por si no contexto de uma visita de estudo sobre o ciclo da água que organizou com alunos de Santiago do Escoural, em 1998. Entre algumas centenas de imagens que Fernando produziu no concelho de Montemor-o-Novo, seleccionamos este conjunto por nos permitir navegar algumas correntes que caracterizaram a sua missão: o seu compromisso pelas questões do ambiente, o seu envolvimento em projectos educativos, a sua ligação com famílias ciganas portuguesas e a forma como criou relações através do gesto de produzir e de devolver imagens sobre o seu contexto de actuação, o Alentejo.
No dia 24 de Setembro de 2021, e no âmbito da pesquisa que tinha então em curso sobre fotografia vernacular em Montemor-o-Novo, almocei com o Fernando em Évora e juntos caminhámos algumas horas pela capital distrital. Realizei-lhe uma entrevista semi-directiva estimulada por uma elicitação fotográfica a partir de imagens capturadas por si nas aldeias dos Baldios, de Santiago do Escoural, de São Cristóvão e de Casa Branca. A conversa, em parte aqui transcrita, fluiu ao redor dos seus gestos de produção e disseminação de fotografias, afinal tão intrincados com as suas concepções de memória e com as relações que mantinha com as pessoas e com o território que retratava intensivamente desde a sua adolescência.
“Desde muito novo que gostei de fotografar, o meu pai deu-me acesso à máquina fotográfica dele. Desde o início eu percebi o valor que tinha para mim fotografar e o valor que tinha a memória que decorria desses actos de fotografar também. E foi sempre assim uma evolução com muita auto-aprendizagem, fui muito autodidacta. E, aliás, interessava-me sempre muito esse lado da fixação da memória. Eu adorava viajar de comboio, aos 14, 15 anos, tinha noção que alguns dos apeadeiros iam ser fechados e fotografava-os. E era caro fotografar! Um ou dois rolos numa viagem era muito dinheiro e era o meu limite, eram um ou dois rolos, mas eu tinha bem a noção desse valor e da importância que tinha esse registo… Quando fui trabalhar para o Escoural foi mais ou menos no período em que estavam a chegar as câmaras digitais, estou a falar de 1998. As fotografias dos Baldios andam entre 1998 e 2000 e é um misto ainda, porque eu estava num projecto de desenvolvimento comunitário que tinha muito dinheiro e aí foi a primeira vez que eu tinha dinheiro para mandar fazer os rolos que eu quisesse em papel. Porque eu normalmente fotografo pessoas, e o compromisso que sempre tive foi o de devolver as fotografias às pessoas.”
À data do nosso encontro, Fernando tinha transitado para a fotografia digital há cerca de duas décadas e com o que antes gastava para produzir e revelar 48 fotografias pagava agora uma conta premium num repositório de imagens em rede: “a conta anual do Flickr é o preço de dois rolos fotográficos!”. A conta de Fernando Moital contém cerca de 90.000 imagens, das quais 30,499 são públicas. Destas, todas têm “uma licença Creative Commons que permite tudo. A internet tem sido tão generosa para mim, tenho aprendido tanto com tanta gente, também quero devolver”.
Embora a popularidade deste serviço de hospedagem de imagens criado pela Ludicorp em 2004 tenha vindo a diminuir dramaticamente nos últimos anos (perdendo terreno em relação a outras plataformas de partilha de imagens em redes sociais, como o Facebook ou o Instagram, ou a serviços de armazenamento de arquivos na nuvem, como o Dropbox), o Flickr é ainda hoje considerado como um exemplo paradigmático da Web 2.0. Enquanto ferramenta apta a armazenar, classificar e compartilhar imagens, o Flickr tocou algumas das principais preocupações sobre noções de arquivamento de fotografias pessoais na era digital, esbateu dicotomias existentes entre a fotografia profissional e amadora e teve um impacto nas formas de consumo e de partilha de álbuns de família e de fotografias particulares, acendendo um debate sobre a materialidade do objecto fotográfico e o papel da circulação de imagens na contemporaneidade (cf. Hogan 2006, Rorissa 2010, Murray 2013).
Ainda que o Flickr e outros softwares de partilhas de imagens em rede tenham alterado significativamente a nossa relação com o objecto fotográfico (tencionando dicotomias entre o material e o imaterial, o público e o privado), no arquivo de Fernando Moital entendemos a sua sensibilidade para a manutenção de algumas imagens no foro do privado e a sua relação com a fotografia enquanto, também, objecto de dádiva e de partilha. Grande parte dos conteúdos não-públicos, e seguramente por conhecer de perto as suas particularidades culturais na relação com imagens capturadas, são retratos de pessoas ciganas que começou a fotografar, justamente, em 1998 em Santiago do Escoural.
“Eu não fazia a mínima ideia de quem eram estas pessoas. Então, em 1998, quando cheguei ao Escoural para trabalhar num projecto da Rede Comunitária, vou às escolas e há um dia que eu percebo, quando estou a chegar às escola do Escoural, que estavam ali umas famílias com cavalos e uma barraca de lata… E a partir daí nunca mais os larguei, sempre que os encontrava parava e falava com eles. E então houve uma vez, há uns oito anos, está quase a fazer, se calhar, 10 anos, uns que eu não conhecia, mas conhecia os avós deles, apanharam-me na rua, eu estava a andar de bicicleta, e disseram-me, “não dá para nos dar a sua morada?”. E eu nem estava bem a perceber o que era… Estas pessoas nómadas têm muita dificuldade em tirar o cartão de cidadão, precisam que alguém lhes empreste uma morada. E eu emprestei. Tenho duas famílias que vivem oficialmente lá em casa, ciganos nómadas. E quando dás a morada, aparece-te tudo, cartas da escola, da polícia, do tribunal. Tenho agora aqui comigo uma do tribunal para lhes dar”.
Fernando continuou, também, a manter uma relação com a “fotografia em papel”. Efectivamente, enquanto passeávamos pelas ruas de Évora, observei como foi abordado por crianças, jovens e adultos, a quem entregou imagens capturadas semanas ou meses antes nos seus acampamentos e que carregava regularmente consigo, dentro de um envelope que me mostrou.
“Mando sempre imprimir, há aqui uma casa de fotografia que agora não imprime quase nada, mando as fotografias por Wetransfer e já estão prontas. Gasto 10, 23 euros por mês. É um luxo, é um prazer, tenho prazer em oferecer as fotografias, seja a quem for. Mas também é quando as tenho e quando encontro as pessoas. Há coisas que nos dão prazer na vida. É como pagar um almoço a alguém. Como agora, eu chego com este envelope ao acampamento com as fotografias e eles sabem que se eu os fotografar hoje, daqui a um mês, ou daqui a seis meses, dou-lhes fotografias. E isto anda sempre assim. E quando não querem que eu lhes tire fotografias, não tiro, também não há mal nenhum. Ainda ontem estive num acampamento… e ando sempre com estas fotografias. Ando sempre a fazer novas e a entregar, isto é para lhes dar a eles. Quando estamos a falar das suas fotografias, eles vão dizendo o nome “é o Latas, é o Madeira” e eu fico com informação do nome. Neste envelope estão misturadas fotografias de há um ano, fotografias de há 15 dias… olha, ontem tive que rasgar uma, vê lá. Devo andar ainda com ela aqui. Porque aparecem aqui representadas três crianças de duas famílias diferentes e então eu mostrei isto a uma mãe e “Ai, dê-me essa, dê-me essa”. “Mas olhe, o seu filho aqui não se vê, quem se vê melhor é este”. “Se não me dá, é melhor queimá-la”, “Não olhe, rasgo-a já”. E rasguei à frente dela. Era para queimar para eu não dar esta fotografia à outra família… Eu tenho assim um bocado a noção que para alguns deles acho que sou o fotógrafo oficial. Então agora, em que a partir do momento em que isto é digital, já ninguém imprime nada.”
As imagens que aqui disponibilizamos são ilustrativas da transição do analógico para o digital a que alude Fernando. São digitalizações de rolos fotográficos com fotografias de uma visita de estudo em Santiago do Escoural. Estas digitalizações foram introduzidas na sua página do Flickr no dia 6 de Novembro de 2017, revisitadas quase 10 anos depois da sua produção, e a ordem com a qual estão aqui apresentadas, bem como o conteúdo das legendas que as acompanham, obedecem ao que se encontra nesse arquivo digital.
“Eu interesso-me muito por fazer conhecer o território às crianças. A gente só conhece o mundo a partir do momento em que conhece também o que nos rodeia e eu achei sempre que era um déficit que havia na educação, conhecer o mundo onde a gente vive. E organizei uma visita.”
Sobre essa visita de estudo, intitulada “Não tem que ser uma grande seca”, Fernando escreveu noutra plataforma:
“Para conhecer é preciso ir, conversar, mexer, apontar, fotografar, enfim…ligar os radares todos. Foi o que fizemos há 20 anos em Santiago do Escoural (Montemor-o-Novo) com o propósito de dar a conhecer uma das essencialidades da nossa vida: saber de onde vem a água que bebemos e usamos e ficar a conhecer para onde vai (e em que condições) depois de a usarmos.”
Além das imagens aqui disponibilizadas, convido a um perscrutar atento das fotografias que Fernando Moital compilou ao longo da sua vida, através de uma navegação pelo arquivo heterogéneo que constituiu, testemunho do seu olhar, das suas lutas e de muitos dos seus encontros, incluindo com grupos subrepresentados, muitas vezes deixados de fora das narrativas que são arquivadas e preservadas para a imaginação de futuros: flickr.com/photos/alacraus.
Das 30,499 fotografias públicas na conta de Flickr de Fernando Moital, a sua grande maioria representa pessoas, elementos e territórios do Alentejo Central. Navegar em tamanha quantidade de imagens não é simples (“eu meto as palavras-chave, mas não sou sistemático… não posso fazer pesquisa por data, porque a maior parte das fotografias foram uploadadas numa data diferente…”). Contudo, no primeiro mergulho neste extenso legado, que realizei semanas antes do nosso primeiro e último encontro, foi possível observar que algumas centenas de imagens foram produzidas no concelho de Montemor-o-Novo. Aqui, por exemplo, Fernando retratou os últimos momentos do funcionamento da escola dos Baldios. No final do nosso passeio por Évora, disse-me:
“Eu gostava de voltar aos Baldios e de encontrar hoje estes miúdos e gostava de encontrar as famílias e gostava de lhes mostrar estas fotografias. Voltar lá outra vez, passado estes anos todos. Pode ser que um dia a gente o faça juntos.”
Não o fizemos. Fica aqui um apontamento, para que essa outra devolução seja um dia realizada.
Gostaria de expressar um profundo agradecimento à disponibilidade e ao acolhimento de Fernando Moital ao longo do meu trabalho de campo em Montemor-o-Novo e os meus sinceros sentimentos aos seus amigos e familiares.
Daniela Rodrigues
Bibliografia
Hogan, Mél 2006, “Tag, You’re ‘It’: Preserving the Photographic Personal Archive Through Flickr. com.”
Murray, Susan, 2013, “New media and vernacular photography: Revisiting Flickr.” In The Photographic Image in Digital Culture. Routledge, 2013. 179-196.
Rorissa, Abebe, 2010, “A comparative study of Flickr tags and index terms in a general image collection” in Journal of the American Society for Information Science and Technology 61, no. 11: 2230-2242.
Links citados do legado de Fernando Moital
https://www.flickr.com/photos/alacraus/
Esta série é uma extensão de uma pesquisa realizada em residência de investigação no Cineclube e Filmoteca do Município de Montemor-o-Novo e tem o apoio do ICNOVA.